Pergunta:

Oi, Su! Antes de mais nada, um aviso: vou falar de alguns casos pesados aqui, se alguém for sensível, opte por não ler :)
Gostaria muito da sua ajuda com um tema que tem me incomodado, pois você tem uma inteligência ética admirável! Pode ser que eu volte outras vezes para falar disso, pois há muitas questões que quero explanar, mas talvez uma única resposta sua baste. A questão é que eu gostaria de ajuda para entender a justiça, a vingança e a violência. Mas vou ficar só em uma coisa hoje (entremeada com outras, hehe)
1. Se vejo uma história, real ou fictícia, em que uma pessoa maldosa (seja porque fez bullying, seja porque abusou/retirou a vida de alguém e nunca se arrependeu dessas coisas) morre, seja morte por vingança, cruel ou não, ou natural; fico pensativa. É triste porque essa pessoa podia ter vivido diferente, mas não dá para sentir pena de alguém assim. Muitas vezes sinto, mas não dá pra defender. As pessoas dizem que um erro não justifica outro. Pode não justificar, mas certamente explica. Normalmente, as pessoas não saem matando as outras por nada, há uma razão. Por exemplo: muitos anos atrás um menino que sofria bullying constante na escola bateu a cabeça do abusador numa pedra. Talvez você tenha visto esse caso também, foi estrangeiro. É feio dizer isso, mas ele fez por merecer. Só Deus sabe o quanto de ódio é preciso conter pra não fazer pior com um bully. As pessoas correm pra ajudar em casos assim, mas onde todas elas estavam enquanto os outros sofriam? Elas dizem “ah, mas ele não devia ter partido para a violência!” e como fica a violência verbal que ele aguentou? O coração dilacerado pelas palavras horrendas que ouviu, não se compara com a cabeça ferida do outro (fora os casos em que esse tipo de gente coloca os outros em situações degradantes e humilhantes). Sei que o coração dói mais, mas ninguém vê e acha que não é “motivo suficiente” para agredir alguém. Minha mãe passou por gordofobia horrível nos tempos de escola, até que um dia ela bateu em todas as meninas que faziam maldades com ela. Algumas até desmaiaram. Minha mãe pegou suspensão, mas essa meninas NUNCA MAIS fizeram mais nada contra ela. Quando minha avó soube, não a puniu, porque sabia o quanto minha mãe sofria com essas coisas. Agora veja, minha mãe tentou ser amiga delas (antes do ocorrido) mas não adiantou. E naquela época não tinha combate ao bullying, era tudo “zoação” e “brincadeira”. Nesse caso, houve uso de violência, até eu me sinto vingada quando escuto essa história, não sinto pena dessas agressoras, porque criança ou não, era isso o que elas eram. Pode não ter sido a melhor medida, mas acho que era a única possível na época. Temos que aguentar tudo calados, esperando o dia em que Deus agirá? Ou podemos tomar alguma medida, mesmo que violenta? O fato de que a justiça de Deus demora, a ponto de talvez nem vermos a pessoa pagar pelos crimes que cometeu, às vezes me deixa nervosa e faz achar que devemos agir mesmo. Mas me deixa muito mais a justiça humana. É errado odiar quem faz coisas más? Que eu me lembre Davi até canta sobre isso. Mais um caso, dessa vez fictício. Eu não assisti, mas como sabia da história no geral, quis saber a que fim levou e perguntei pra quem viu. Numa séria brasileira de uns anos atrás, uma moça foi sexualmente abusada por um mesmo homem. Ela denuncia, eles chegam a prendê-lo, mas ele diz que quando sair vai encontrá-la e fazer o mesmo outra vez. E sai. E faz. Até que ela o mata. Eu não vi saída para a moça na época. Entendi totalmente o motivo. Havia outra saída, se mesmo depois de preso ele não mudou, se voltou para maltratá-la outra vez? Porque eu não percebi outra opção. Não acho certo ela viver com medo desse homem aparecer pro resto da vida, sabendo que ele ficaria impune de novo. Pessoas assim estão desperdiçando oxigênio e a vida dos outros.
Provérbios 11:10 diz “A cidade fica contente com o sucesso das pessoas honestas, e há gritos de alegria quando morre um homem mau.” e Salmos 139.19 – 24
Então, tudo bem se alegrar (ou ao menos sentir alívio) com a queda dos maus? Tudo bem ter esse “ódio” que Davi descreve?
Há também Juízes 3.12-30. Pensando bem, nunca pesquisei sobre essa história e seu significado, mas a achei muito inteligente (a estratégia de entrar e sair do palácio). Deus não ficou contra a morte desse rei, e alguns capítulos para frente, Débora e Baraque comemoram a morte de um homem mau, morto por Jael. Então até que ponto Deus aprova a violência? Até que ponto não?
Como você pôde ver, escrevi coisas maldosas. Mas isso é o que está no meu coração atualmente, nesse fase de vida. Acredite, estou há mais ou menos um mês pensando nessas coisas e criando coragem para conversar, pois me dei conta de que não posso mais me guiar pelo meu próprio senso de justiça. Pode me dizer onde meu pensamento está errado. Eu quero melhorar como pessoa. Obrigada por ler! D.

Resposta da Sú:

Hello, D.! Sua pergunta na verdade traz vários “fios” entremeados. Uma vez que a gente acredita que nosso primeiro referencial é a Bíblia, pois nela Deus mostra como viver de forma coerente com nossa verdadeira identidade (de pessoas amadas, salvas e que estão sendo transformadas cada vez mais à semelhança de Jesus), então comecemos por aí.

Mas, para analisar o que Bíblia diz sobre qualquer assunto, a gente precisa de algumas diretrizes de interpretação.

1 – A Bíblia conta a história da redenção, ou seja, ela é progressiva. O que valia para o povo de Deus três ou quatro mil anos atrás, talvez não valha para nós hoje.

2 – Algumas partes da Bíblia são descritivas (simplesmente dizem o que aconteceu, ou como as coisas são) e outras são normativas (fornecem diretrizes para nossa vida). Muitas vezes, as partes descritivas oferecem princípios ou conceitos adaptáveis para nós, mas não devem ser entendidas como instrução ou como exemplo a ser imitado.

3 – Com a vinda de Jesus, acontecem algumas evoluções ou desdobramentos importantes nas instruções de Deus para seu povo. Aquilo que era representado em diversas formas no Antigo Testamento, agora está presente como realidade em Jesus. E isso muda uma porção de coisas.

Okay, dito isso tudo, vejamos algumas passagens sobre vingança:

1 – Em Deuteronômio 32.35, uma fala de Moisés para o povo de Israel, ele transmite estas palavras de Deus: “A mim pertence a vingança e a retribuição. No devido tempo, os pés deles [dos inimigos, dos perversos] escorregarão; o dia de sua desgraça está chegando e o seu próprio destino se apressa sobre eles”. Esse versículo é mencionado também em Hebreus 10.30.

2 – O profeta Naum diz para o povo perverso da cidade de Nínive: “O Senhor Deus zeloso e vingador! O Senhor é vingador! Seu furor é terrível! O Senhor executa vingança contra os seus adversários e manifesta o seu furor contra os seus inimigos. O Senhor é muito paciente, mas o seu poder é imenso; o Senhor não deixará impune o culpado. O seu caminho está no vendaval e na tempestade, e as nuvens são a poeira de seus pés”,

3 – Jesus, ao ensinar seus seguidores, diz: “Amem os seus inimigos e orem por aqueles que os perseguem, para que vocês venham a ser filhos de seu Pai que está nos céus. Porque ele faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos” (Mt 5.44). E também: “Façam o bem aos que os odeiam” (Lc 6.27).

4 – Em Romanos 12.19, Paulo instrui os cristãos: “Amados, nunca procurem vingar-se, mas deixem com Deus a ira”. E, então, ele também cita a passagem de Deuteronômio: “Pois está escrito: ‘Minha é a vingança; eu retribuirei’, diz o Senhor”. E, alguns versículos antes (Rm 12.14), ele diz (repetindo o ensino de Jesus): “Abençoem os que os perseguem; abençoem, e não os amaldiçoem”.

Existem muitas outras passagens, mas estas devem servir para extrairmos alguns princípios.

1 – Em nenhum momento da história da redenção, Deus disse que a vingança era um privilégio, um direito ou uma escolha nossa. A vingança sempre foi dele. Deus é absolutamente justo. Ele também é zeloso (ou seja, não deixas as coisas por isso mesmo) e vingador. Em alguns momentos específicos da história da redenção, de acordo com a realidade a cultura das respectivas épocas, Deus usou pessoas para executar sua vingança. Mas, essa vingança só era correta e legítima quando a instrução vinha diretamente de Deus (como em Juízes 3, em que Eúde foi escolhido por Deus para libertar os israelitas e matou o rei Eglom). Quando o povo de Israel entrou em Canaã e recebeu a ordem de matar os povos de lá (violência total!), foi apenas por ordem de Deus, depois que ele tinha dado a esses povos vários séculos de oportunidade de se arrepender e mudar de vida. À medida que a história da redenção avança, esse cenário muda. No Novo Testamento, não vemos ninguém receber a ordem de se vingar dessa forma. O momento ético é outro. E, só para você saber, ainda estamos vivendo nesse momento, entre as duas vindas de Jesus. É o momento de (com graça e forças de Deus) amar aqueles que odeiam e orar pelo bem de nossos inimigos.

2 – Nos “Salmos Imprecatórios” (em que o salmista xinga todo mundo e deseja que coisas horríveis aconteçam com seus inimigos – p. ex., os salmos 11,35, 40, 56, 94, 139, etc.), na verdade o salmista está orando. Ele está pedindo que Deus faça justiça, que Deus se vingue, que Deus coloque as coisas em ordem. Está expressando sua mente e seu coração, cheios de sentimentos e pensamentos de todo tipo (nem todos eles bons ou agradáveis a Deus) e sendo totalmente honesto com Deus. Podemos fazer o mesmo quando somos confrontados com situações difíceis. Provérbios, por sua vez, traz muitos versículos descritivos, que simplesmente refletem a realidade, sem nos dizer se ela é correta ou não, se deve ser perpetuada/imitada ou não. São apenas constatações dos fatos.

3 – E agora vem a parte mais difícil. A meu ver, o Novo Testamento não poderia ser mais claro. A vingança não é um direito nosso. A violência não é o ideal de Jesus para nós. Os versículos que falam sobre isso, em minha opinião, são normativos. Se Jesus instruiu, então deve estar valendo, não? Pelo menos, foi dessa forma que os primeiros seguidores de Jesus entenderam. Eles foram perseguidos, torturados, verbalmente insultados e, por vezes, mortos.  Eles sofreram inúmeras injustiças horrendas, mas não revidaram com violência.

4 – Agora, houve ocasiões em que os cristãos, por direção de Deus e por sabedoria e bom senso, tomaram providências para evitar ser alvo de violência ou para proteger a própria vida e de outros. Paulo fugiu mais de uma vez de cidades em que foi ameaçado de morte (ou apedrejado até quase morrer). Pedro, que tinha sido preso injustamente, fugiu quando Deus abriu as portas da prisão para ele (Paulo, em contrapartida, não fugiu quando as portas foram abertas, mas ficou na cadeia e evangelizou o carcereiro e sua família). Isso nos mostra duas coisas: Primeiro, a providência a ser tomada diante de situações de perigo, violência e injustiça pode variar de uma ocasião para outra e de uma pessoa para outra. Saberemos o que é correto para nós em determinado momento se estivermos em sintonia com Deus, abertos para a direção do Espírito. Segundo, essa providência geralmente e idealmente não envolve violência, mas, sim, evasão (fugir ou evitar) e, possivelmente, alguma astúcia ou recurso às autoridades competentes (veja, p. ex., At 22.23-29).

5 – Em relação às situações que você apresentou. Talvez o episódio de vingança de sua mãe pareça ter resolvido a questão. Mas será que esse realmente era o _único_ recurso? Se sua avó sabia dessa violência que a filha sofria, por que não a defendeu? Essa é uma séria responsabilidade dos pais e pode ser que a omissão dos adultos tenha sido a causa da violência de sua mãe cometeu tanto quanto o abuso verbal que ela sofreu. Quantos anos tinha sua mãe? Ela era cristã na época? Não estou condenando categoricamente o que ela fez.  Estou dizendo que, muita vezes, quando nos parece que existe apenas uma saída, Deus poderia ter criado outras. Raramente a questão é tão simples, do tipo: Se revidar, resolve.

O mesmo se aplica à moça do caso fictício. Será que realmente era a única saída? Ela esgotou todos os recursos, com todas as autoridades, amigos, familiares, etc.? Não poderia ter mudado de cidade/estado? De novo, não estou simplesmente condenando, mas tentando mostrar que vingança e violência não devem ser entendidas como soluções ideais, nem como recursos imediatamente válidos, por mais “eficazes”, “justificados” ou “convenientes” que pareçam.

6 – Por fim, vivemos uma tensão entre o ideal e o real e ocupamos um espaço entre o geral e o específico. Em nosso mundo quebrado, há situações em que nenhuma solução é ideal. Buscamos orientação de Deus para entender a melhor saída dele para a situação. E, embora existam princípios gerais, muitas vezes só entendemos qual é o melhor caminho quando buscamos a vontade de Deus para nossa situação específica, ou seja, para descobrir como os princípios se aplicam na prática. De novo, sem comunhão com Deus, não dá para saber o que é vontade dele e o que são propensões e racionalizações humanas.

Imagino que esse moooonte de coisas não esclareça 100% suas dúvidas, mas espero que as considerações acima sirvam de fundamento para continuarmos as conversas sobre esse assunto!

Que Deus nos ilumine com a luz do seu Espírito!

Até a próxima!

Kisses,

Su

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